A Porta

Clarice Stabenow
3 min readSep 6, 2020

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Ilustração de minha autoria. Porta Amarela.

Eu só vejo uma porta, uma porta amarela desbotada.

Uma porta velha. Uma porta arranhada e velha.

Eu não enxergo bem com um dos meus olhos, mas eu sei que aquela bendita porta delimita entre o sorriso de alguém que preciso ver todos os dias e o quieto silêncio em que me obrigam viver.

Aquela bendita porta me impede.

Aquela porta que eu jamais consigo ultrapassar.

Eu fico a bater insistentemente a noite, para que alguma alma piedosa me ajude a ver o que eu preciso ver, cheirar e sentir o toque que não sei quanto mais de tempo terei para experienciá-lo.

A porta que parte a parte que me encara todo dia sem ter notícias de algo que necessito para existir.

A porta que bate e arde a ausência do não-vir.

A porta que range e junto com esse som desagradável, o ranger também está em mim e está porque ainda não consigo ouvir a voz que me anima a cada dia e que me faz levantar com vida.

A porta intacta que não toca o eu e não é aberta.

A porta que apenas fecha e jamais torce sua maçaneta.

A porta.

A porta não é minha única imagem, mas é dela que eu espero tudo de mais bonito, eu não quero os gritos dos outros, sequer me importo com a violência expelida em mim. Eu só me importo com o andar das nossas pernas, o meu fôlego atrapalhado, a luz que me banha e os seus avisos de cuidado. Eu só me importo com isso.

Ninguém mais se importa com a bendita porta que não se abre.

Ninguém.

Desliga a luz, diz tchau, mas abre a porta para um último relance.

Abaixa a voz, acalma no toque, mas por favor, um último instante.

Despede sem dor, fala como for, mas eu te imploro, um último abraço escaldante.

Sem muito retoque, teu vermelho incendeie, meu branco te queime, nesse último hoje como se fosse antes.

Que a astúcia te guie, teus pés não vacilem, teu cheiro harmonize e teu som equalize.

Que a saliva que cura, teu beijo restaure, teus olhos te guardem e o teu abraço sempre te salve.

Eu falei da porta e do quanto ela me impede, mas há tardes ensolaradas em que tudo revive, floresce e ao findar, apodrece. Não tem nada de errado com isso, afinal somos assim também, temos data de fabricação e um dia virá nosso vencimento, no entanto, não somos produtos descartáveis e quando nos damos conta disso, as portas já não são mais as mesmas, nem as paisagens, nem as pessoas que amamos. Nós também não somos mais algo ali para estragar. É o caminho que define a vida, o fim é o mesmo para todos nós, diferencia-se apenas pela maneira em que se mostra. O caminho define a vida e isso nos faz olhar com cuidado melindroso para ela, pois pode ser tanto algo bom como ruim, e tudo que tem dois lados nos amedronta e nos deixa inseguros. Não somos bons em escolhas.

Eu não fui bem em escolher esperar abrirem a porta, no entanto, pude notar que nem tudo se resumia àquela porta e foi nesse momento que as outras cores sem ser o amarelo desbotado, pareciam reavivar na minha visão já falha.

A porta.

O amarelo desbotado.

As grades de marrom enferrujado.

As paredes quadriculadas estonteantes.

O verde das mais variadas plantas e a mistura de cor que se dava com seus frutos e flores.

Eu estava em frente a porta que não me era aberta, mas existiam outras coisas que só estavam à espera da minha abertura a elas.

Não seja uma porta que nunca se abre, elas emperram e nunca mais voltam a funcionar.

Talvez eu não retorne para dizer adeus, então desde já me despeço. Ao sorriso que me alegra nas manhãs inanimadas e nas tardes cheias de pássaros, o meu até logo, porque as memórias me farão totalmente eterna.

Com amor, P.

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